terça-feira, 14 de outubro de 2014

À Marinha Portuguesa

Vale o que vale.
Mas vale.
Quando nos morre um pai não há nada que nos possam dizer para nos fazer sentir melhor.
Não há palavras mágicas não há abraços não existem beijos que nos arranquem do desespero da perda e da saudade.
Depois da vida temos apenas que prestar a nossa homenagem aos que nos deixaram, em cada momento, em cada atitude, em cada vírgula, mas também nas cerimónias fúnebres.
É no sentido de agradecer, emocionado, à Marinha Portuguesa que escrevo este texto.
Quando informados sobre a morte do meu pai, o meu querido Comandante Puppe, a Marinha estendeu sobre nós a sua asa e tratou de tudo.
Disponibilizou a capela de São Vicente, no ministério da Marinha e o oficial de ligação , o comandante Alif.
Trataram de nos receber com a pompa de uma farda branca imaculada e com a bandeira nacional a meia haste. Isto fez-me sentir como se para o país importasse a minha perda. Fez-me sentir que o país chorava comigo. Numa altura em que o sentimento de nação se dissipa, comecei a olhar a bandeira de outra forma.
No funeral, a salva de tiros dos fuzileiros, impecavelmente fardados e com o brio que os caracteriza, ecoou até à Índia e à Guiné, onde o meu pai serviu na guerra. A bandeira nacional em cima do caixão fez-me sentir que era um pouco de Portugal que morria. Mas para mim era também um pouco de Portugal que renascia, ao lembrar-me do que já fomos, e continuamos a ser nos homens que envergam aquela farda, que no fundo é a farda de todos nós.
Quando o corpo desapareceu em fumo, o oficial presente devolveu ao meu irmão mais velho a espada como que passando para nós a responsabilidade de continuar a servir como o Pai serviu, o País.
Escrevo, emocionado, que nunca vou esquecer a forma digna como a Marinha se ocupou deste assunto triste.
Lembro-me que na altura comentei que nestas alturas tudo isto vale o que vale.
Mas vale.
Obrigado.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Viver

As coisas como são. Os pelos brancos na barba, sou pai não tenho pai nem mãe. O Tejo, os barcos os carros muito devagarinho a atravessar a ponte, o café esquecido a ficar frio.
A luz filtrada de fim de Setembro e as imagens recorrentes de um passado não muito longínquo em que era apenas um filho.
Arrependimentos, porque não te levei a ver o mar uma ultima vez?
Sinto o coração amarrado por arame farpado, preso. Cada movimento provoca dor e estar quieto não ajuda.
As coisas como são. 
Às sete chega a Filipa com o António ao colo carregada de sacos e tenho de fazer o jantar e dar banho ao pequeno que já tem um dente e está meio refilão.
Enfiá-lo no pijama branco que o faz parecer uma bolinha sorridente e por momentos desamarrar o peito.
Esperar até às sete.
Ir comprar , por exemplo, um frango.
Respirar.
Viver.
Viver.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Galão de Verão

Galão no verão na esplanada o alcatrão consome gelados de infantes malcriados nascidos no lugar errado já procriando outros.

Galão no verão o Espírito Santo na televisão o gelado caído do filho preterido Lisboa adormecida roupa estendida ao sol que não se vê nas ruas estreitas

Limpando pelo imóvel cortinas abertas à aragem e aos meus olhos volta a Portugal ressoa pelas paredes paralelas e disformes

Confunde-se com os calcanhares de policias e canções africanas
E tradutores do momento inventando palavras em francês

E inglês e espanhol e alemão de mapa na mão
entretendo o meu galão
de verão.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

1

Desço as escadas de madeira até à sala e com os olhos meio fechados procuro a casa de banho.
Encontro-a e começa a transformação. Ouvido de fora deve soar a morte quando tusso os pulmões negros de tabaco e vomito as entranhas liquefeitas de noite. Olho-me ao espelho e reconheço-me por trás das veias salientes. Sou mesmo eu e isto não é um pesadelo, estou em casa.
Ainda imagens de há bocado num espaço indeterminado e cheiro a fumo. Imagens algumas estroboscópicas e outras de dia.
Muito difusas , procuro por pistas nos bolsos do casaco, uns extractos um cigarro de enrolar sem filtro. Abro a carteira ainda tenho cartões parece tudo normal, tenho o telefone.
Respira.
Os interiores já um bocado gastos reclamam à sua maneira mas estou melhor. Procuro tabaco e não encontro portanto visto as calças de ganga com a forma das minhas pernas e vou ao Sorap. Antes endireito o cigarro do bolso e fumo-o sem filtro. O Sorap é do Bangladesh e trabalha numa dessas novas mercearias que se multiplicam por Lisboa. Às vezes as cebolas são boas e têm sempre a aparelhagem toda – filtros slim e mortalhas smoking azuis.
Na carteira com cartões não há dinheiro, procuro nos bolsos das calças e do casaco e também não o encontro.
Subo a escorregar pela calçada à portuguesa até ao multibanco menos longe, o ecrã dá-me as notícias que estava à espera, gastei outra vez muito mais do que podia. Foi pelo menos um concerto em cerveja e sei lá o que mais. Logo agora que tenho de arranjar um dente.
Desço a escorregar pela calçada portuguesa de óculos escuros e mesmo assim a olhar para baixo não vá passar por alguém que conheça. Pago ao bangladeshiano, faço a esquina apoiado no varão de trânsito, subo as escadas e estou em casa outra vez, vou dormir fecho os olhos adormeço.
E mãos fechadas como estrelas cadentes atravessam os agrupamentos planetários e os sistemas entre um arco-íris nocturno e o negro do cosmos. Curvam e dirigem-se para mim, sinto os murros, acordo, o telefone toca um número desconhecido e escolho atender porque pode sempre ser uma oportunidade irrepetível.
Tinha combinado conhecê-la. Ficámos de nos encontrar no miradouro e quando cheguei já me esperava. Estava com uns óculos escuros redondos e o cabelo preso atrás. Olá tudo bem desculpa o atraso. Não faz mal está um dia bonito está a saber-me bem estar aqui.
Está bonito, a chuva passou e o sol de inverno estende os braços pelo espaço cedido pelas nuvens pesadas. Ilhas de luz no Tejo mas algum vento frio. Digo que me atrasei porque ontem acabei por sair e fiquei até mais tarde e não consegui acordar. Fui ao Coliseu ver uma banda horrível que estava na moda nos anos noventa porque alguém tinha bilhetes, como não estava a gostar nada daquilo fiquei no bar o tempo todo. Acabei por me embebedar um bocado e cheguei a casa de manhã. Explico-lhe que não me lembro de nada desde a última imperial em copo de plástico ao balcão até acordar e correr para a casa de banho.
O Norte entra-me pelo casaco e decido fechá-lo.
Ela fica a olhar para ele e meio sem saber se devia comentar ou não, acaba por dizer
Já reparaste que o teu casaco está sujo?
Deixa-me ver parece sangue.
Pois devo ter caído, respondo, procurando feridas debaixo da barba crescida. Sem cortes na cara, sem dores nos ombros nos joelhos ou nos cotovelos, sem marcas aparentes começo a pensar que este sangue no meu casaco, não é do meu.