Desço as escadas de madeira até
à sala e com os olhos meio fechados procuro a casa de banho.
Encontro-a e começa a
transformação. Ouvido de fora deve soar a morte quando
tusso os pulmões negros de tabaco e vomito as entranhas
liquefeitas de noite. Olho-me ao espelho e reconheço-me por
trás das veias salientes. Sou mesmo eu e isto não é
um pesadelo, estou em casa.
Ainda imagens de há bocado num
espaço indeterminado e cheiro a fumo. Imagens algumas
estroboscópicas e outras de dia.
Muito difusas , procuro por pistas nos
bolsos do casaco, uns extractos um cigarro de enrolar sem filtro.
Abro a carteira ainda tenho cartões parece tudo normal, tenho
o telefone.
Respira.
Os interiores já um bocado
gastos reclamam à sua maneira mas estou melhor. Procuro tabaco
e não encontro portanto visto as calças de ganga com a
forma das minhas pernas e vou ao Sorap. Antes endireito o cigarro do
bolso e fumo-o sem filtro. O Sorap é do Bangladesh e trabalha
numa dessas novas mercearias que se multiplicam por Lisboa. Às
vezes as cebolas são boas e têm sempre a aparelhagem
toda – filtros slim e mortalhas smoking azuis.
Na carteira com cartões não
há dinheiro, procuro nos bolsos das calças e do casaco
e também não o encontro.
Subo a escorregar pela calçada à
portuguesa até ao multibanco menos longe, o ecrã dá-me
as notícias que estava à espera, gastei outra vez muito
mais do que podia. Foi pelo menos um concerto em cerveja e sei lá
o que mais. Logo agora que tenho de arranjar um dente.
Desço a escorregar pela calçada
portuguesa de óculos escuros e mesmo assim a olhar para baixo
não vá passar por alguém que conheça.
Pago ao bangladeshiano, faço a esquina apoiado no varão
de trânsito, subo as escadas e estou em casa outra vez, vou
dormir fecho os olhos adormeço.
E mãos fechadas como estrelas
cadentes atravessam os agrupamentos planetários e os sistemas
entre um arco-íris nocturno e o negro do cosmos. Curvam e
dirigem-se para mim, sinto os murros, acordo, o telefone toca um
número desconhecido e escolho atender porque pode sempre ser
uma oportunidade irrepetível.
Tinha combinado conhecê-la.
Ficámos de nos encontrar no miradouro e quando cheguei já
me esperava. Estava com uns óculos escuros redondos e o cabelo
preso atrás. Olá tudo bem desculpa o atraso. Não
faz mal está um dia bonito está a saber-me bem estar
aqui.
Está bonito, a chuva passou e o sol
de inverno estende os braços pelo espaço cedido pelas
nuvens pesadas. Ilhas de luz no Tejo mas algum vento frio.
Digo que me atrasei porque ontem acabei por sair e fiquei até
mais tarde e não consegui acordar. Fui ao Coliseu ver uma
banda horrível que estava na moda nos anos noventa porque
alguém tinha bilhetes, como não estava a gostar nada
daquilo fiquei no bar o tempo todo. Acabei por me embebedar um bocado
e cheguei a casa de manhã. Explico-lhe que não me
lembro de nada desde a última imperial em copo de plástico
ao balcão até acordar e correr para a casa de banho.
O Norte entra-me pelo casaco e decido
fechá-lo.
Ela fica a olhar para ele e meio sem
saber se devia comentar ou não, acaba por dizer
Já reparaste que o teu casaco
está sujo?
Deixa-me ver parece sangue.
Pois devo ter caído, respondo,
procurando feridas debaixo da barba crescida. Sem cortes na cara, sem
dores nos ombros nos joelhos ou nos cotovelos, sem marcas aparentes
começo a pensar que este sangue no meu casaco, não é
do meu.