quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sem compromissos

Sem compromissos

A subir os degraus do teatro a barraca em santos, rápido porque já se ouve a guitarra tocada, é a primeira vez que ouço TvRural. No andar do concerto, um grupo de cinquenta pessoas entoa cada silaba de uma letra cujo significado me escapa, gritada sem pudor na língua de lisboa.
No palco a catarse dramática de olhos fechados, explosiva gutural tensa poética e surreal acontece.
Na altura (2001?) ninguém escreve em português e eles fazem-no com a segurança de quem cresceu a ouvi-lo.
A música dos TvRural pode ser descrita como anti-pop, pela sua rejeição sistemática das fórmulas compositivas de formatos amigos da rádio, pela sua busca do espontâneo, do gozo e às vezes do feio. É tudo liberdade de fazer o que aqueles músicos descendentes do psicadélico e do progressivo querem fazer, com arranjos elaborados e vários momentos melódicos e rítmicos por tema, acentuando a dimensão teatral da performance da banda, nunca antes totalmente traduzida quando gravada. Na “Balada do Coiote” fruto talvez das experiências extra banda de alguns dos seus membros, eles conseguem transmitir esse ambiente que se vive ao vivo, num registo gravado.
Os TvRural nunca tiveram problemas em beber da panela. Foram sempre o que quiseram ser. Influenciaram todos os que os ouviram. E o novo disco -sem nunca se comprometer- apenas desilude quando acaba.


A propósito e a pedido dos TvRural , sobre "a Balada do Coiote"




quarta-feira, 17 de julho de 2013

A Azeitona Insegura


                                                            A Azeitona Insegura



Só, num ramo verde frágil, segura apenas por uma mão, ela olha as irmãs a ficarem maduras falando de riquezas interiores. Falando do seu corpo e da sua pele ficar morena, perenes nos dias de chuva e indiferentes ao vento forte que a ela quase que leva.
Esta árvore já formou centenas de cursos e nunca ninguém apontou qualquer defeito na sua formação. 
Por algum motivo há flores que aparecem primeiro, a disciplina obriga a que se lhes dê prioridade. Esta foi das últimas a decidir-se e por isso nem foi numerada, como se não contassem que chegasse ao fim.
Demorou a nascer e foi num lugar improvável que revelou a sua personalidade, resistindo ao norte, às dores de ouvido e noites sem dormir. Lá foi crescendo no meio da folhagem sem pedir autorização para se tornar grande e  finalmente perceber o segredo de todo aquele rigor.
Supostamente no fim dos dias mais difíceis, ser-lhes-ía dito alguma coisa que justificaria todo aquele orgulho e  presunção. As flores mais velhas sabiam que a escola lhes tinha preparado um ramo durante um ano inteiro e isso enchia-as de orgulho e sentimento de individualidade. Mas o ramo onde florescia segura apenas por uma mão, parecia recém nascido e cadente. E questionava- -se.
Num dia de maio, mergulhada nas suas inquietações, respirando de braços abertos o ar a ficar mais quente, foi-lhe revelado finalmente o segredo.
A árvore reconhecia-lhe a tenacidade e acreditava no seu valor, podia ser uma das outras e representar todo o Olival. Apesar de esmagada pela responsabilidade, sentiu-se colorida.
Deveria ouvir uma canção naqueles dias. Uma canção mágica que contava a mesma história repetida todos os anos ao longo dos séculos. Não se cantava pela boca nem se ouvia pelos ouvidos.
Era como se se respirasse e de repente se soubesse que o destino era ser fruto.
E depois ouro.
Agora sim cheia do seu tesouro, ela própria meio e fim, sorri à chuva e espera pelo futuro.
A música da primavera poliniza as flores que passam a ser fruto que se prepara para ser colhido pelo homem. Isto aprende-se na primeira aula. A obrigação da azeitona é esforçar-se para crescer bem e estar no seu melhor no dia da Colheita.
Apesar de ter sido aceite ainda faltava muito para se tornar azeite e comparada continuava meio esverdeada e pequena. O frio chegou, mas do inverno já não tem medo, e foi numa dessas noites que o viu pela primeira vez.
Gigante, afastando os quartos da sua academia com os seus braços enormes, era um homem, que agora olhava directamente para ela e lhe admirava a cor. Depois de deter-se um bocado a perceber-lhe o tamanho, afasta-se o colosso suspirando nuvens da boca.
Toda a velha instituição tremeu depois daquela inspecção. Então o homem fora escolher logo aquela para olhar? Ainda não totalmente preta e já o inverno se consuma adivinhando o grande dia.
Seria esta vez a primeira que a reconhecida fonte não seria escolhida?
Sentindo a pressão, a nossa azeitona não dorme e faz por crescer em todos os momentos em que as outras, grandes e ociosas , descansam ao sol de Novembro.
Mas o tempo de crescer passou. Aproxima-se o dia da Colheita. Nesta árvore e em todas no grande mar que se estende até onde o sol se põe, faz-se a cerimónia do final de ano.
Todas as azeitonas incluindo as inseguras trajam de preto total e a escola descansa por mais um dever cumprido.
Um dia depois chegam as máquinas com homens lá dentro a cantar.
Dos seus pulmões sai a mesma canção que tinha sentido no dia da sua polinização. O dia em que lhe foi revelado o segredo e o seu destino glorioso. Desta vez eram os homens e não o vento a cantá-la.
Já no cesto, recordou-se de tudo o que tinha passado até àquele momento, de ser flor e de ser pequena.
Agora repara que no cesto é mais do que ela. Passou a ser uma com as suas semelhantes e é como um rio.
Repara que das outras árvores-escola saem outras como ela, pequenas e da sua cor.
Pensa como tudo faz sentido e , já no Lagar, não se contém. Comovida, desfaz-se em lágrimas.
E transforma-se em Azeite.

O António sabe que o fruto das azeitonas inseguras faz um Azeite melhor. E por isso escolheu aquele lote para levar ao concurso de onde levou o primeiro prémio.
Na quinta celebrou-se. A árvore foi informada.

25/12/12  para o livro do António Corrêa Nunes "Os Caminhos do Azeite"