A Azeitona Insegura
Só, num ramo verde frágil, segura apenas por uma mão, ela
olha as irmãs a ficarem maduras falando de riquezas interiores. Falando do seu
corpo e da sua pele ficar morena, perenes nos dias de chuva e indiferentes ao
vento forte que a ela quase que leva.
Esta árvore já formou centenas de cursos e nunca ninguém
apontou qualquer defeito na sua formação.
Por algum motivo há flores que aparecem primeiro, a
disciplina obriga a que se lhes dê prioridade. Esta foi das últimas a
decidir-se e por isso nem foi numerada, como se não contassem que chegasse ao
fim.
Demorou a nascer e foi num lugar improvável que revelou a sua
personalidade, resistindo ao norte, às dores de ouvido e noites sem dormir. Lá
foi crescendo no meio da folhagem sem pedir autorização para se tornar grande
e finalmente perceber o segredo de todo
aquele rigor.
Supostamente no fim dos dias mais difíceis, ser-lhes-ía dito
alguma coisa que justificaria todo aquele orgulho e presunção. As flores mais velhas sabiam que a
escola lhes tinha preparado um ramo durante um ano inteiro e isso enchia-as de
orgulho e sentimento de individualidade. Mas o ramo onde florescia segura
apenas por uma mão, parecia recém nascido e cadente. E questionava- -se.
Num dia de maio, mergulhada nas suas inquietações, respirando
de braços abertos o ar a ficar mais quente, foi-lhe revelado finalmente o
segredo.
A árvore reconhecia-lhe a tenacidade e acreditava no seu
valor, podia ser uma das outras e representar todo o Olival. Apesar de esmagada
pela responsabilidade, sentiu-se colorida.
Deveria ouvir uma canção naqueles dias. Uma canção mágica que
contava a mesma história repetida todos os anos ao longo dos séculos. Não se
cantava pela boca nem se ouvia pelos ouvidos.
Era como se se respirasse e de repente se soubesse que o
destino era ser fruto.
E depois ouro.
Agora sim cheia do seu tesouro, ela própria meio e fim, sorri
à chuva e espera pelo futuro.
A música da primavera poliniza as flores que passam a ser
fruto que se prepara para ser colhido pelo homem. Isto aprende-se na primeira
aula. A obrigação da azeitona é esforçar-se para crescer bem e estar no seu
melhor no dia da Colheita.
Apesar de ter sido aceite ainda faltava muito para se tornar
azeite e comparada continuava meio esverdeada e pequena. O frio chegou, mas do
inverno já não tem medo, e foi numa dessas noites que o viu pela primeira vez.
Gigante, afastando os quartos da sua academia com os seus
braços enormes, era um homem, que agora olhava directamente para ela e lhe
admirava a cor. Depois de deter-se um bocado a perceber-lhe o tamanho,
afasta-se o colosso suspirando nuvens da boca.
Toda a velha instituição tremeu depois daquela inspecção.
Então o homem fora escolher logo aquela para olhar? Ainda não totalmente preta
e já o inverno se consuma adivinhando o grande dia.
Seria esta vez a primeira que a reconhecida fonte não seria
escolhida?
Sentindo a pressão, a nossa azeitona não dorme e faz por
crescer em todos os momentos em que as outras, grandes e ociosas , descansam ao
sol de Novembro.
Mas o tempo de crescer passou. Aproxima-se o dia da Colheita.
Nesta árvore e em todas no grande mar que se estende até onde o sol se põe,
faz-se a cerimónia do final de ano.
Todas as azeitonas incluindo as inseguras trajam de preto
total e a escola descansa por mais um dever cumprido.
Um dia depois chegam as máquinas com homens lá dentro a
cantar.
Dos seus pulmões sai a mesma canção que tinha sentido no dia
da sua polinização. O dia em que lhe foi revelado o segredo e o seu destino
glorioso. Desta vez eram os homens e não o vento a cantá-la.
Já no cesto, recordou-se de tudo o que tinha passado até
àquele momento, de ser flor e de ser pequena.
Agora repara que no cesto é mais do que ela. Passou a ser uma
com as suas semelhantes e é como um rio.
Repara que das outras árvores-escola saem outras como ela,
pequenas e da sua cor.
Pensa como tudo faz sentido e , já no Lagar, não se contém.
Comovida, desfaz-se em lágrimas.
E transforma-se em Azeite.
O António sabe que o fruto das azeitonas inseguras faz um
Azeite melhor. E por isso escolheu aquele lote para levar ao concurso de onde
levou o primeiro prémio.
Na quinta celebrou-se. A árvore foi informada.
25/12/12 para o livro do António Corrêa Nunes "Os Caminhos do Azeite"